quarta-feira, 12 de março de 2014

João Pimentel: Marcado pela própria natureza

João Pimentel: Marcado pela própria natureza

'Viva a Em Cima da Hora, viva Edeor de Paula!'

O DIA
Rio - Há dois anos escrevi um livro, ‘Marcadas Para Viver’, sobre algumas escolas que tiveram grandes momentos, grandes sambas e hoje lutam para sobreviver. Uma delas, a Tupy de Brás de Pina, já enrolou bandeira, expressão usada para aquelas que são obrigadas a encerrar suas atividades. De cara, a primeira escola que me veio à cabeça foi a Em Cima da Hora, agremiação pra lá de simpática do bairro de Cavalcante. No ano de 1976, quando era uma das forças emergentes do Carnaval carioca, vinda de uma ascensão meteórica pelas divisões de acesso, ela chegou ao grupo das grandes com um dos melhores sambas de todos os tempos.
‘Os Sertões’ narrava a história de Antonio Conselheiro e do Arraial de Canudos e descrevia de forma brilhante o sertão brasileiro. O autor, Edeor de Paula, que nunca havia lido o livro homônimo e sequer sabia quem era Euclides da Cunha, caiu de paraquedas na escola e teve que vencer diversos concursos para ser aceito na ala de compositores. Mesmo assim, vejam só, quase foi derrotado. O presidente na época, Chiquinho, procurou o cunhado, o jornalista Sergio Cabral, que, ao ouvir a obra, sugeriu um júri de fora da escola. Deu certo.
Mas quis o destino que a frase inicial do samba, “Marcados pela própria natureza”, se virasse contra a escola. Uma chuva torrencial caiu naquele 29 de fevereiro, ano bissexto, e fez com que o desfile ganhasse ares de tragédia. Um carro ficou preso no barracão, outro não entrou na Avenida, as fantasias e os instrumentos ficaram prejudicados. A escola terminou em penúltimo lugar e caiu. Tirando um ou outro brilhareco, a escola nunca mais se reergueu. Edeor me disse, em uma entrevista, que viveu naquele dia um misto de alegria e tristeza, pois a escola estava mais arrasada do que o Arraial de Canudos, mas o povo todo cantava seu samba. Algo assim como o último badalar da igreja de Conselheiro antes da destruição de Canudos.
Mas isso foi no século passado, como diz o samba! Na sexta-feira, a Em Cima da Hora abriu o desfile da Série A do Carnaval carioca. Poucos sabem que, apesar de ter conquistado o direito de voltar à Sapucaí e realimentar seus sonhos de grandeza, a Azul e Branca quase aposentou seu pavilhão no ano passado. Convidado a desfilar por uma amiga, Sylvinha, filha do já citado Chiquinho, me preparei para cantar ‘Os Sertões’ na Avenida. Mal sabia que desta vez era
eu quem seria marcado pela própria natureza.
Marquei com um amigo taxista, o Digão, às 19h, para dar tempo de beber uma cerveja com os amigos na concentração. A escola sairia às 21h. Foi quando a flora, não a do sertão, mas a intestinal, começou a dar defeito. Não bastasse isso, raios e trovões eram o prenúncio de chuva. “Poxa”, pensei, “a Em Cima da Hora não merecia chuva”. Adiei a corrida até as coisas se acalmarem.
Saí de casa, em Laranjeiras, atrasadíssimo. Digão fez um trajeto cortando caminho pela Rua Alice, Barão de Petrópolis até chegar ao Catumbi. Já na Avenida, esbaforido, encontrei meu querido colega de profissão, de samba e da vida, Bernardo Araújo, que me convenceu a ir para perto da bateria. Na ida, com a camisada diretoria, brinquei: “Bê, a gente pode dar umas ordens, uns esporros,já que somos diretores”. Mal fiz a brincadeira e percebemos que um carro estava com problemas. O peso excessivo fez com que dois pneus esvaziassem. E o número de empurradores não ajudava.
Conclusão, de diretores passamos rapidamente para o time da força, do apoio. Se eu estava me sentindo estranho com a camisa de diretor, função que não exerço nem na minha casa, ali, empurrando sabe-se lá quantas toneladas, me reconheci.
Ajudando, coordenando o pessoal do apoio,dando sangue pela escola até a Praça da Apoteose, eu e Bernardo justificamos o convite da Sylvinha. Não consegui ver o desfile, mas soube que a escola estava linda, aguerrida, exorcizando um fantasma de 38 anos. Viva a Em Cima da Hora, viva Edeor de Paula!

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