Rio -  A dois dias de homenagens a São Jorge, o coração aperta por devoção. Com absurda intimidade, Jorge é um santo carioca. Anel no dedo, sapato charlote, cordão pesado no pescoço com a camisa aberta pra melhor brilhar a imagem no aro, alcançou na cidade, com seu esguio cavalo branco, o status de feriado, caldo de galo ou mocotó, birosca cheia de cor vermelha e fita apertada no pulso com três pedidos sentimentais, sempre.
Meu saudoso amigo  Cláudio Camunguelo, mão de estivador, mas sensível feito um ourives, rodava a cidade passando um caderno onde anotava as doações para essa data querida. Morador de Vista Alegre, a zona sul do Irajá, já acordava o bairro com os fogos da alvorada harmonizando o trumpete melodioso do mestre Silvério Pontes.
Uma quantidade de uca capaz de intimidar ‘Zé Pilintra’, siris desentocados na margem esquerda da Gamboa, violões e pandeiros, um cardápio servido na garagem do prédio, cômodo adaptado em sua residência oficial, e vamos festejar de peito aberto, porque facas e lanças se quebram sem o meu corpo tocar.
Botequim de subúrbio só dá movimento se, na parede carcomida, resplandecer seu perfil no salão. A mesma proteção compreende inúmeras escolas de samba, equipes de futebol, apontador de bicho e polícia de plantão.
Há praticamente um cessar fogo, bandeira branca do Vidigal a Vila Vintém, do Leme ao Pontal, Jorge Ferraz, Jorge Aragão, Jorge Ben.
A primeira missa, que hoje acompanho da Senhor dos Passos, acontece na madrugada. Rezas e sincretismo, sussurro contrito ou um solitário atabaque branco que se ouve desde a Central do Brasil emolduram esta manhã de fé.
O Glorioso é o padroeiro de Portugal e da Etiópia, a ferradura pilando uva e café, esteio de um povo, raiz de suas culturas.
Conheço dezenas de músicas inspiradas e dedicadas ao Santo Guerreiro. Eu mesmo compus uma canção com o meu parceiro Aldir Blanc, ‘Medalha de São Jorge’, cantada em feitio de oração. Nos versos finais, um aviso:
“Que a malvadeza desse mundo é grande em extensão
E muita ‘vez’ tem ar de anjo e cara de dragão...”
A rima clama por tempos melhores, longe de coréias e bombas onde manto sagrado desbota na miséria humana.
Que Pixinguinha, outra entidade do mesmo dia, nos traga solfejos de ‘Carinhoso’, notas encordoadas no terço da misericórdia, recitando pedidos de amor e paz a todos desse planeta ainda azul de esperança.