Rio -  Entro no táxi e o motorista me reconhece. Deixo ele a vontade e ele pede: — Posso ligar pra minha mulher?
A cabeça, amparada por várias taças de vinhos, acena sem jeito. Telefone em viva voz , ela, a esposa, sugere ao chofer que ele cante a musica composta em homenagem a filha e, o casal, em diferentes ambientes, solfeja uma linda canção de ninar. Interpretação subitamente interrompida, o novo amigo explica: —Falta um pedaço, o que você acha?
No fim da Perimetral estávamos os três com os versos finais em alto volume repetindo: “Sofia! Sofia!”
Meus mestres João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro no belo samba ‘O Poder da Criação’ vaticinam “ninguém faz samba só porque prefere”. A música nasce feito uma semente esquecida no jardim: quando menos se espera, desabrocha.
Lembro de uma tarde a toa na vida, eu e meu parceiro Aldir Blanc hipnotizados com os peixes num aquário caseiro. Pareciam namorar, evoluções na água límpida, um balé submerso, corte e sedução De repente, surge uma frase dita pelo nosso poeta tijucano “ela é de peixes, eu sou de aquário”, a faísca necessária pra incendiar a inspiração. Virou bolero e foi gravada por duas divas da música brasileira, Nana Caymmi e Leni Andrade.
A arte tem muito de inesperado. Numa viagem que fiz à Angola, três shows inesquecíveis, fui indagado carinhosamente pelo anfitrião do evento: — Tá vendo os iates, essa mansões, esse Mercedes Benz parado na porta? É tudo de ‘negão’, Moa. Aqui quem manda somos nós! E abriu um sorriso de dentes perfeitos.
Na volta, Rio de Janeiro, assisto uma apresentação do projeto Batucadas Brasileiras, aonde alunos das áreas carentes do centro da cidade, aprendem os mistérios de ser um musico profissional.
Do nada, uma frase escapa do meu inconsciente:- Estranhou o quê? Preto pode ter o mesmo que você! - O corpo treme, os versos debulham feito pétalas e sai um samba que hoje se destaca no Samba do Trabalhador.
Não sou egoísta. Diferentes caminhos chegam a criação. Sempre fui intrigado com a batata. Quem teria insistido no cozimento do tubérculo antes de perder o canino em duras mordidas primitivas? Quem descascou o primeiro abacaxi, quem abriu a noz, a ostra, o mexilhão na encosta da pedra?
Eu acredito na intervenção divina.
A maçã na cabeça do Einstein, a rã à doré da Taberna Dom Rodrigues, a piada que se espalha feito gripe, até a música que nasce sorrateira na madrugada e hoje é luz, na boca do povo. Tudo é um estalo.
Botequim cheio, um franzino rapaz acena pro balcão:
— Seu garçom, faça o favor de trazer depressa uma boa média que não seja requentada...
Ao seu lado, um amigo exaltado:
— Ô Noel, esse troço dá samba!!