Rio -  Levei um susto com o julgamento de policiais militares acusados do massacre do Carandiru, em São Paulo. É quase inacreditável saber que alguns dos supostos responsáveis pela chacina só venham a encarar a Justiça quase 22 anos depois do fato. Assim como é absurdo notar que a apuração do crime tratou de, ao longo dos anos, livrar a cara de autoridades como o então governador de São Paulo, Luiz Antonio Fleury Filho, e seu secretário de Segurança, Pedro Franco de Campos.
O intervalo entre o caso Carandiru e seu julgamento diz muito sobre a nossa Justiça. É uma agressão, um desrespeito a quem acredita numa sociedade capaz de respeitar os direitos básicos de cada um de nós. O prazo de mais de duas décadas não é por acaso, não reflete apenas a competência de advogados encarregados de garantir a impunidade de seus clientes.
O longo período reforça a existência de pessoas — entre elas, policiais e autoridades — que se dispuseram a, tardiamente, assumir a cumplicidade dos que determinaram e praticaram uma das maiores barbáries de nossa história recente: a invasão de um presídio e a execução de 111 homens desarmados. Sei que alguns gostariam de fazer uma correção na frase anterior; substituiriam a expressão “homens desarmados” por “bandidos”. Mas, desculpe, vou deixar do jeito que está. O o fato de as vítimas serem criminosos condenados não retira delas a condição de homens, seres humanos como eu e você.
Não, não gosto de bandidos, não carregaria nenhum deles pra casa. Os que foram mortos no Carandiru cometeram atos que os levaram para a cadeia, onde cumpririam uma pena determinada pela sociedade. Lá, deveriam ter sua integridade física respeitada — a tarefa está incluída nos salários que pagamos a carcereiros, policiais, secretários de segurança e governadores. Sim, muita gente defende que criminosos não deveriam ter qualquer direito, sugerem até prêmios para os policiais que invadiram o presídio. Os adeptos do extermínio, porém, esquecem que ninguém está livre da violência praticada pelas forças do Estado. Qualquer um de nós — jornalistas, médicos, operários, faxineiros, advogados — pode ser vítima da arbitrariedade de um policial. A condenação da chacina e da lerdeza cúmplice da Justiça representa um gesto humanista, de defesa da civilidade e das leis, mas é também uma espécie de habeas corpus preventivo para todos.
Fernando Molica é jornalista e escritor | E-mail: fernando.molica@odianet.com.br