Rio -  Defensor de um Rio mais igualitário, Jailson de Souza e Silva, 52 anos, sofreu na pele o preconceito. Nascido em Brás de Pina, criado no Complexo da Maré e neto de empregada doméstica, só transitava no elevador de serviço, entrava pela porta dos fundos e ficava na cozinha dos patrões.
Não se conformou. Estudou, concluiu doutorado em Sociologia pela PUC, hoje é professor da UFF e ajudou a criar o Observatório das Favelas. Acaba de lançar o livro ‘O Novo Carioca’, inspirado no que considera o novo cidadão do Rio, mais humano e tolerante às diferenças.
Foto: Paulo Alvadia / Agência O Dia
'Só conheci a cozinha e o elevador de serviço quando fui à casa da patroa (da minha avó)' | Foto: Paulo Alvadia / Agência O Dia
ODIA: Qual a diferença entre esse novo carioca que está surgindo e os antigos moradores do Rio?

JAILSON: O velho carioca é aquele que se acostumou a viver em uma cidade marcada pela segregação racial e social. Vive só para o seu mundo particular e só se sente confortável quando está junto de pessoas iguais a ele. Uma vez, uma médica moradora da Barra da Tijuca me disse que era contra a construção do metrô que ligaria o Aeroporto do Galeão à Barra, porque levaria mais pobres para o bairro dela. Ela se sente uma cidadã, paga seus impostos, mas não tem consciência de como a violência da segregação é tão forte. Esse isolamento tem origem na violência que tomou conta do Rio nos últimos 30 anos.

E quem são os novos cariocas?

São pessoas que não necessariamente nasceram no Rio, mas se sentem cariocas. Elas valorizam a luta pela igualdade, pela dignidade humana, pelo respeito às diferenças e pelo direito de cada um viver plenamente como bem quiser.

O que motivou a mudança de comportamento?

Na década de 1990, surgiu um forte movimento de grupos, como a Cufa (Central Única das Favelas), o Nós do Morro, o AfroReggae, pré-vestibulares comunitários e associações de moradores que não têm relação com partidos políticos. Essas pessoas ampliaram a capacidade de mobilidade cultural e financeira pela cidade. A periferia chegou à universidade e passou a ter acesso a bens de consumo. São esses novos cariocas que estão reiventando a cidade, se sentindo à vontade para ir ao baile funk e, ao mesmo tempo, frequentar centros culturais, como o CCBB. Por outro lado, jovens de áreas nobres foram ao encontro das favelas para trabalhar. São essas pessoas que legitimam as diferenças, construindo a pedagogia da convivência. Ou seja, não precisamos ser iguais ao outro para convivermos.
Na sua opinião, a ideia de que o Rio de Janeiro é uma cidade partida, como disse o escritor Zuenir Ventura, não passa de um mito. Por quê?

Acredito que não existe cidade partida. Nós, que nascemos e fomos criados na periferia do Rio, circulamos pela cidade, vamos ao Maracanã e a outros espaços culturais. O que temos é o Estado partido. A oferta de serviço público no Leblon é muito melhor do que a no subúrbio. O Estado regula as áreas nobres e abandona a periferia.

O que esses novos cariocas não toleram mais?

Não toleram a intolerância. Ser discriminado por ser mulher, morador da favela, paraíbano, idoso, obeso. Não aceita a indignidade. Não é militante. É alguém que sabe se relacionar, conviver com as diferenças. Você só sabe que é um novo carioca no momento em que não se importa se sua filha namora um negro ou se seu filho é homossexual.

Como ex-morador da favela da Maré, chegou a sofrer algum tipo de preconceito?

Sou neto de empregada doméstica e meu pai era nordestino. Só conheci o espaço da cozinha e do elevador de serviço nas vezes que fui à casa da patroa dela. Caras como eu não frequentavam a universidade. Hoje nos tornamos intelectuais. Sou professor universitário e mestiço. Temos o direito à diferença. Sinto-me respeitado para circular em todos os ambientes.

As Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) instaladas em favelas antes violentas contribuíram para essa mudança?

A UPP não criou o novo carioca, mas favorece a sua mobilidade, a liberdade de ir e vir pela cidade. O problema é que não acabou com o preconceito. Há um profundo ódio ao funk. As pessoas precisam entender que a graça da vida é se equilibrar entre os dois mundos. O equilibrista não fica parado até chegar ao outro lado, mas pende para um lado e outro.

A Maré deverá receber uma UPP. Como moradores estão se preparando para a chegada da unidade?

Não temos nada contra a polícia, mas eles são servidores públicos que precisam respeitar a população. A polícia não tem que mediar os conflitos, porque ela é parte do conflito. Não queremos que o comandante se torne um novo dono do morro. Muitos defendem a UPP como programa de controle sobre a favela. A comunidade tem que se organizar. Vamos propor a criação de ouvidorias nas UPPs, começando pela Maré.

O que podemos aprender com esse novo carioca?

Principalmente, que devemos respeitar a escolha do outro, sem patrulhamentos. Cada um deve dar sentido à sua vida, da forma que bem entender. Tem quem queira ser a melhor mãe, outros preferem ajudar em orfanatos, ou apenas dar a volta ao mundo. O novo carioca respeita as escolhas e não força ninguém a ser o que ele não quer.